18 de agosto de 2012

Democracia, propriedade pública, emancipação

“Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à emancipação prática.” (Karl Marx, 1843)

Emancipação política e emancipação humana


A propriedade pública é um elemento fundamental da política socialista. Sobre isto, proponho apenas umas notas, do abstrato ao concreto, da esfera jurídico-política para a económica. Marx apresentava a emancipação política como um grande progresso iniciado pelas revoluções burguesas. A desigualdade da sociedade de ordens herdeira do feudalismo foi abolida juridicamente com a afirmação da igualdade entre cidadãos. É claro que onde havia voto censitário se excluíam ainda os trabalhadores e durou muito até que as mulheres pudessem votar e alcançar a igualdade jurídica em vários aspetos.

[Artigo publicado em A Comuna nr. 28]
N' A Questão Judaica, Marx centra-se na emancipação política do judeu como uma emancipação incompleta, que resulta de uma “cisão do homem na vida pública e na vida privada”. Salientando “que a emancipação política não implica emancipação humana”. E fazendo notar as limitações da emancipação política: “[o] limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre”. Os direitos humanos são limitados aos direitos “do membro da sociedade burguesa”. Numa luta permanente encontram os seus limites nas fronteiras impostas pelos interesses do capital.
Em todo caso, conforme reproduzido acima, “[e]mbora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela [emancipação política] se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual”.

A luta dos trabalhadores e das trabalhadoras

No caminho para a emancipação humana, a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras desde o século XIX foi conquistando espaço na esfera jurídico-política.
Com avanços e recuos e de forma diferente conforme as latitudes, o fim do trabalho infantil, o horário de trabalho, o direito à greve, o salário mínimo (...) resumindo, o direito do trabalho foi uma conquista civilizacional. Embora não se abolisse a exploração burguesa do trabalho, a limitação dessa exploração permitiu a humanização do trabalho. As regras para o despedimento, o direito à organização dos trabalhadores, a proteção no desemprego e na doença, o direito às licenças de maternidade e paternidade, deram mais segurança e liberdade às trabalhadoras e aos trabalhadores.Estes direitos não nasceram da bondade das classes dominantes, nasceram das lutas de classes. Foi a luta e a força dos trabalhadores que permitiu estas conquistas. E foi para conter o avanço da revolução social que as classes dominantes fizeram aquilo que Gramsci chamava “revolução passiva”. Ou seja, ante a força crescente das classes populares, as classes dominantes concedem avanços, operam mudanças progressistas para que respondendo parcialmente às reivindicações populares, as classes dominantes se mantenham dominantes, eventualmente acrescidas por elementos cooptados.

As democracias do Pós-Guerra

As constituições europeias do pós Segunda Guerra Mundial, e mais tardiamente a portuguesa conquistada na sequência do 25 de Abril de 1974, consagram em diferentes graus uma cidadania com direitos sociais e laborais que permite uma maior liberdade, um progresso para a emancipação humana.
No centro de tudo isto está a propriedade pública e o poder de apropriação pública. De facto foi também pela via fiscal que a apropriação pública de parte dos lucros privados (recuperação pública de parte da mais-valia roubada ao trabalhador) que se garantiram os recursos necessários a essa cidadania mais avançada. Uma cidadania em que além da afirmação da igualdade formal se corrigia parte da desigualdade material e, assim, se tornava mais real a liberdade formalmente proclamada.
Além da correção da desigualdade pela via fiscal, com impostos progressivos reinvestidos em direitos sociais universais, também a propriedade pública sobre sectores estratégicos formava a base material das democracias europeias herdeiras do pós-Guerra. Nem em todo o lado foi igual, e teve momentos distintos. Onde as particularidades o permitiram e a isso conduziram (modelo nórdico) o Estado Social assentou mais na fiscalidade. Mas noutras paragens (o modelo continental do Miterrand inicial) a aposta foi, e bem, nas nacionalizações. Só um forte sector público garantia o desenvolvimento, os direitos dos trabalhadores, os serviços públicos, o progresso e a democracia.

A Contra-reforma

Estes foram ganhos de uma “guerra de posições” que permitiriam progressivamente mais reivindicações e mais conquistas. Está errado quem acredita no “quanto pior, melhor”. Porém, esses avanços, parciais que são, duraram enquanto o desenvolvimento e as crises do capitalismo não exigiram um recuperar de terreno para o capital, contra os avanços das trabalhadoras e dos trabalhadores.
Desde a evolução das tecnologias (equipamentos, organização do trabalho) ao direito e organizações internacionais, tudo foi mobilizado pelas classes dominantes para operar a “contra reforma” do capital contra o trabalho. A este propósito, são de salientar como exemplos importantes: as regras do comércio internacional (GATT e OMC), do sistemas monetários (FMI), liberalização da circulação do capital, o próprio poder militar (particularmente a NATO) e as regras e instituições da União Económica e Monetária (Pacto de Estabilidade e Crescimento, BCE).
Os direitos sociais e laborais são, por um lado, abolidos na letra da lei com revisões constitucionais e novos códigos de trabalho, por outro e como reforço daquele, negados materialmente através de restrições orçamentais.

Grande parte desta contra reforma foi operada pela vaga neoliberal. “É a economia, estúpido”, dizia, nos anos 1990, Bill Clinton, naturalizando um processo iniciado por Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido. Toda a Thatcher teve o seu Blair. As capitulações foram muitas e as cooptações também, a social-democracia oficial abandonou a defesa da propriedade pública, privatizou, passou a carga fiscal para o trabalho e aliviou o capital, passou o investimento público para a lógica das parcerias público-privadas, abraçou as “inevitabilidades” da flexibilidade laboral (ainda que dissesse, episodicamente, que era a “flexisegurança”).

Grandes de mais para falir...

Falar em nacionalizações era considerado uma loucura, no quadro da ideologia dominante. Porém a crise financeira iniciada em 2007 nos EUA trouxe profundas mudanças também nesse quadro. As infinitas virtudes da economia privatizada e dos mercados à solta esbarraram na necessidade de recorrer aos Estados para socorrer os bancos “too big to fail”.
A onda afetou a Europa e desde o início da crise, a lista de bancos nacionalizados e injetados com capital público já vai longa, ao BPN português juntam-se entre outras instituições: Royal Bank of Scotland, Northern Rock, no Reino Unido; Bank of Ireland, Allied Irish Banks, Anglo Irish Bank, Irish Life and Permanent, Irish Nationwide Building Society, EBS Building Society, na Irlanda; IKB e Commerzbank, na Alemanha; Ethias, Fortis e KBC, na Bélgica; ABN Amro, na Holanda; Caja Castilla La Mancha, Cajasur, CAM, Catalunya Caixa, Unnim e NovaCaixaGalicia e Bankia no Estado Espanhol.
Nacionalizaram-se os prejuízos da banca, tornando pública a dívida privada. A finança atacou as dívidas públicas, especulou com apoio das agências de rating, cuja propriedade pertence aos próprios especuladores. A Comissão Europeia e os Governos condenaram os povos às receitas do FMI e do BCE. A proposta de uma agência de notação pública europeia nunca avançou e o dinheiro do BCE, dinheiro que é público, financia a especulação através da compra de dívida pública apenas no mercado secundário e após financiar a banca privada a baixo custo. Financiar os Estados e o desenvolvimento? Para o BCE: “isso é que não!”.

Grandes de mais para ser privados

A vaga da ideologia neoliberal fez esquecer à maioria do povo que o crédito é mais que um simples negócio privado, é um bem público. A nacionalização dos prejuízos veio provar o contrário. Também a perda de direitos decorrentes privatizações e desinvestimento na saúde, na educação, nos transportes e na segurança social vão mostrando da pior maneira que a cidadania com direitos sociais não vive apenas de proclamações. Assenta necessariamente na propriedade pública e sem ela é uma ilusão a prazo.
A era dos credores e da austeridade é também o tempo de um poderosíssimo elemento ao ataque à democracia chamado Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária. Este tratado impõe a inscrição do vírus monetarista nas constituições. Essa dita “regra de ouro” do limite de 0,5% ao défice dos Estados além de ser hipócrita, é destruidora da democracia. É hipócrita porque sob ela, os bancos nunca teriam sido salvos. É anti-democrática porque retira poder de decisão a todos os governos presentes e futuros. Contrariamente ao que gostam de assumir os liberais, é uma regra programática. É um programa de contra reforma sob a forma viral. Aquele limite vem somar-se ao favorecimento fiscal da banca e das grandes empresas, vem negar materialmente os direitos sociais e laborais que formalmente as constituições ainda consagram. É uma norma que destrói o que resta da propriedade pública e anula, na prática, direitos conquistados por gerações de trabalhadores e trabalhadoras.
O programa político que pode resgatar e aprofundar as conquistas democráticas que estão a ser destruídas não é de modo algum um programa de conciliação ao centro, um programa que engula memorandos de austeridade, perda de soberania popular e sujeição a instituições imperialistas. A política socialista exige escolhas claras na defesa do salário e da propriedade pública. Exemplo dessa opção de responsabilidade e de força são, na França, a proposta de um "socialismo republicano que ultrapasse os horizontes do capitalismo" afirmada por Jean-Luc Mélenchon, enquanto candidato presidencial do Front de Gauche, e na Alemanha o programa do Die Linke aprovado no Congresso de Erfurt, realizado entre 21 e 23 de outubro de 2011.
Sobre estas questões pode ler-se com toda a clareza no programa do Die Linke: “Uma questão crucial da mudança social continua a ser a questão da propriedade. Poder económico implica força política. E enquanto as decisões das grandes empresas forem guiadas pelos interesses de acionistas privados e não pelo interesse público, a política será sempre sujeita à chantagem e à erosão democrática. Uma sociedade democrática, social, pacífica, amiga do ambiente obriga à contenção e à eliminação do poder económico daqueles que prosperam sobre a pobreza, a exploração, a destruição da natureza, o armamento e as guerras.”

Retomemos Marx

“Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.” (1843)
Bruno Góis
Referências
Karl Marx (1843), A Questão Judaica, Braunschweig,disponível on-line em <http://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm>.

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